Depois do relativo alívio sobre o EUDR – ainda aguardamos a publicação de legislação portuguesa, além da decisão do Parlamento Europeu na próxima semana -, a semana que hoje termina centrou-se nas preocupações da Indústria sobre o futuro da SILOPOR, pela sua importância estratégica. Subsistem muitas dúvidas: vai ser liquidada e vem aí uma nova empresa? Como será a futura concessão? Centrou-se, igualmente, nos acréscimos brutais nos valores de contrapartida da gestão dos resíduos de embalagens e outros materiais, seja do Ponto Verde ou da “novidade” do VALORFITO, a partir de 1 de janeiro de 2025, as quais vão obrigar ao pagamento de milhões de euros pelo setor agroalimentar e também da alimentação animal, custos que terão de ser necessariamente repassados para o consumidor.
Que garantias temos de que os sacos e os resíduos que vamos “gerir” vão acabar nos pontos de recolha do sistema de gestão? Qual a taxa de recolha? Vai haver controlo e monitorização? Penalizações para os não cumpridores? Já para não falar da transparência (ou falta dela) no cálculo dos montantes que temos de pagar às entidades gestoras. Um dossiê a que voltaremos certamente na próxima semana, uma vez que prosseguem os contactos e as reuniões sobre esta medida.
No entanto, o grande tema do momento, pelos impactos nos diferentes setores, desde logo no agroalimentar, é certamente o acordo entre a União Europeia e os países do Mercosul, compromisso político assumido a 6 de dezembro e que vai ter de ser ainda ratificado pelos Estados-membros. Serão eles indiferentes ao maior acordo de comércio livre do mundo, que envolve mais de 700 milhões de consumidores?
Segundo a Comissão Europeia, estão protegidos mais de 350 produtos europeus nos mercados sul-americanos pelas IGP (Indicações Geográficas), o que assegura a diversidade e genuinidade dos produtos europeus, incluindo os nacionais, e, o mais relevante, as normas europeias, sanitárias e alimentares continuarão salvaguardadas. As empresas europeias poderão poupar em direitos de exportação quatro mil milhões de €/ano, o que é muito significativo, tornando-as mais competitivas.
Em nossa opinião, o acordo tem uma importância política, estratégica no contexto atual, e naturalmente económica, pelos seus impactos nas empresas e nos cidadãos.
No plano político, surge numa altura e na sequência das pressões da presidência espanhola da União Europeia, em que Alemanha e França estão claramente em dificuldades, económicas e sociais, o que mostra a fragilidade do eixo franco-alemão.
Se o acordo foi possível neste momento, depois de anos de negociação, travada pelas questões agrícolas, apesar da contestação da França e das ameaças dos seus agricultores, este é um sinal claro da atual debilidade do Presidente Macron. A Alemanha, tal como Espanha e Portugal, entre outros, necessitava deste desfecho, que vai muito para além das questões agrícolas: o mercado automóvel, têxtil, propriedade intelectual, também, o alimentar… e na parte agrícola, setores tão importantes como o vinho e o azeite.
Há ainda a acrescentar o papel da União Europeia no contexto da geopolítica global e toda a instabilidade que se vive atualmente, com o Brasil a ser cada vez mais ativo no quadro dos BRIC, não podendo esquecer que estamos a poucos dias do início da presidência de Donald Trump. Também não podemos ignorar as matérias-primas críticas (lítio, manganês metais…) como alternativas à China, mitigando os riscos de dependência e vulnerabilidade nas cadeias de abastecimento. Politicamente, com todos os riscos internos e as potenciais contestações, era importante iniciar um novo mandato da Comissão com este “momento”, mostrando que o bloco europeu pode ainda “dar cartas” a nível mundial.
Do ponto de vista puramente económico, os estudos de impacto mostravam desde há muito tempo que a União Europeia seria claramente ganhadora em termos globais, mas o setor agrícola saía a perder, sobretudo em dois setores relevantes para a nossa Indústria: as aves (frango) e os bovinos de carne.
É absolutamente vital o cumprimento (equidade) das regras ligadas à segurança alimentar, ambiente, bem-estar animal e sociais. Será que tudo isto está absolutamente garantido?
Para a indústria de alimentação animal, que depende fortemente das importações de milho e soja de países terceiros, as origens sul-americanas representam mais de 500 milhões de euros anuais, cerca de 30% do volume de negócios do setor. O Brasil e a Argentina têm um peso de 30% do abastecimento de milho a Portugal, 61% no caso da soja, enquanto a Argentina é o nosso principal fornecedor de bagaço de soja, com uma quota entre 40 e 50%. Não irão existir problemas de maior, pelo contrário, questões centrais como a deflorestação poderão ser menos complexas, permitindo uma maior fluidez e previsibilidade. Outras questões, como as mais ligadas à segurança das matérias-primas e aos limites máximos de resíduos, têm de ser asseguradas. Os direitos nos cereais são uma não questão. As garantias de que serão cumpridas as exigências da União Europeia, anunciadas pela Presidente Von der Leyen, não podem ser palavras vãs.
As preocupações centram-se, em nossa opinião, nos produtos de origem animal.
Na carne de bovino, o acordo prevê a entrada de um total de 99 000 toneladas de carne de bovino, inferior às 196 000 toneladas que entram atualmente no Mercado Único. No setor avícola, está prevista uma quota de 180 000 toneladas (1,8% do consumo), sem direitos e progressiva em cinco anos, inferior à média das importações dos países do Mercosul, que se situaram, em 2022, nas 240 000 toneladas. A UE é exportadora de carne de aves e de bovino, essenciais ao equilíbrio do mercado interno, pelo que importa manter essa capacidade competitiva.
Para Portugal e no nosso setor, consideramos o acordo como globalmente positivo, bem melhor do que as expetativas iniciais. É evidente que comporta riscos, desde logo a “contaminação” dos baixos preços, mas também desafios e oportunidades que temos de saber enfrentar, com o apoio do Governo e com articulação, que é essencial, entre os ministérios da Agricultura, Economia e Ambiente. Temos de olhar com atenção para a monitorização e para o cumprimento das regras de produção que são exigidas aos operadores nacionais e que têm de ser observadas pelos congéneres do Mercosul. Será que este acordo vai permitir (finalmente) que olhemos para as questões da biotecnologia agrícola de outra forma?
Por último, não menos relevante, a ratificação: para Portugal não vai ser problema, pese embora as vozes discordantes, mas França já prometeu tudo fazer para comprometer o acordo e a Itália e outros Estados-membros poderão juntar-se-lhe. A discussão promete continuar, centrada nos setores potencialmente perdedores. Conselho, Comissão Europeia e Governos têm de estar particularmente atentos, comunicar com transparência todos os impactos, e compensar os setores mais afetados. Infelizmente, como se antevia, em França, os agricultores regressam às ruas e ameaçam paralisar o país, pelo que o movimento se pode alargar facilmente a outros Estados-membros.
É importante encerrar-se o tema do Mercosul porque os desafios que nos esperam – Diálogo Estratégico da PAC, o futuro da Agricultura e Alimentação, os conflitos mundiais, o apoio à Ucrânia e a integração na União Europeia (e na NATO?), o orçamento para a defesa, bem como as relações transatlânticas da Era Trump 2.0 – exigem coesão e estabilidade da parte da União Europeia. Estaremos preparados?
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA – Associação Portuguesa Dos Industriais De Alimentos Compostos Para Animais
*Este artigo de opinião foi retirado, com a devida autorização do autor, do site da IACA.