“Queremos recuperar o destaque das leguminosas”

Marta Vasconcelos lidera o grupo de investigação PlanTech, que neste momento está envolvido em dois projetos: o Increase, que pretende reanimar e dar destaque a quatro leguminosas (grão-de-bico, feijão comum, tremoço e lentilha), e o Radiant, que pretende promover a agrobiodiversidade e a inclusão de culturas subutilizadas na Europa, como leguminosas, espécies hortícolas e variedades mais antigas e esquecidas de cereais. O objetivo, afirma a Professora Auxiliar e investigadora na Escola Superior de Biotecnologia, é produzir novos produtos tradicionais “que o consumidor anda à procura”, de forma mais sustentável.

Entrevista: Margarida Paredes / CiB

Fotografia e vídeo: Orlando Almeida

Qual é a componente do seu trabalho mais virada para a biotecnologia?

Há várias áreas na atividade do meu laboratório que tocam a biotecnologia. Trabalhamos tanto a área da nutrição como a área da fitopatologia e as componentes da biologia molecular e da compreensão dos mecanismos que levam a determinados fenótipos, como um aumento do valor nutricional do alimento  ou uma maior resistência a stress hídrico e stress biótipo. Tentamos sempre perceber o porquê desses traços que queremos melhorar. Essas ferramentas, esse know how dos mecanismos subjacentes a estes fenótipos são depois potenciais alvos de processos de melhoria biotecnológica das culturas para introdução de traços desejáveis. Por outro lado, temos a componente da biotecnologia alimentar, em que trabalhamos o processamento alimentar e as formas de o utilizar para o desenvolvimento de novos produtos melhorados. Ao longo da minha carreira tenho trabalhado também na utilização de ferramentas biotecnológicas para validar processos, por exemplo a transformação de leveduras com genes de plantas para compreender e validar esses transportadores e a sua função biológica.  

Nos últimos 20 anos tem-se dedicado à área das Ciências da Vida, com ênfase na nutrição, qualidade e saúde das plantas. Porque escolheu esta área?

A área da nutrição surgiu quando terminei a licenciatura em biologia vegetal aplicada. Na altura decidi enveredar por um projeto de doutoramento nas Filipinas que me permitiu fazer o melhoramento genético do arroz. Foi um projeto na área da biofortificação, por isso a compreensão do papel do ferro na nutrição humana foi algo que me interessou desde muito cedo. Entretanto fui para os Estados Unidos, onde continuei a trabalhar na área da nutrição em ferro, tentando não só perceber porque razão algumas culturas (neste caso, leguminosas) são mais ricas nesse micronutriente como também avaliar o papel de alguns transportadores no uptake do ferro, ou seja, compreender o potencial desses transportadores na biofortificação. Estava integrada num contexto muito interessante – num centro de nutrição para crianças -, onde tinhamos todas as valências necessárias, desde a produção à nutrição humana, o que nos permitia validar processos nas plantas, oferecer plantas melhoradas ou biofortificadas e ao mesmo tempo conduzir ensaios de biodisponibilidade já em modelos animais ou em modelos humanos. Quando decidi criar o meu próprio laboratório vim para o Porto, em 2008, e institui o Plant Biotechnology for Susbtainability Lab, que agora se chama Plant Nutrition & Biotechnology for Susbtainability Lab. Na altura vim sem financiamento, pelo que foram tempos iniciais muito desafiantes. O mote era criar um laboratório e isso envolvia arranjar recursos para contratar staff, alunos e equipamento. O desafio que me foi dado consistia em tentar encontrar uma resposta biotecnológica para o nemátodo da madeira do pinheiro, uma área um pouco diferente daquela em que trabalhava. O único denominador comum era a biotecnologia, ou seja, tentar perceber se há genes de resistência para o nemátodo da madeira do pinheiro e comparar árvores resistentes com tolerantes, tentar entender o porquê dessa resistência ou tolerância para no futuro desenhar estratégias biotecnológicas. E foi através desse projeto que consegui financiamento para o arranque do Laboratório PlanTech. É uma linha que temos vindo a continuar no laboratório, mas o grande ênfase continua a ser a nutrição vegetal ligada à saúde.

Esteve 5 anos no Centro de Investigação em Nutrição Infantil, no Baylor College of Medicine, nos EUA, para tentar melhorar o conteúdo nutricional dos vegetais e o seu efeito na saúde humana. Que avaliação faz do trabalho que aqui desenvolveu?

Para além de ter sido uma experiência muito enriquecedora do ponto de vista pessoal, em termos de resultados científicos foi muito importante, porque tive a oportunidade de colaborar na marcação da pró-vitamina A no arroz dourado, que depois foi usado num estudo humano para validar a biodisponibilidade deste betacaroteno. Foi também uma oportunidade de perceber de que forma é que as plantas são realmente fulcrais na alimentação humana e que efeitos têm na saúde e de poder também desenhar metodologias para fazer esta validação.  

“O aumento do CO2 atmosférico está a levar a um descréscimo no teor em proteína, em ferro, em zinco e em outros micronutrientes minerais nos alimentos.”

Tem já um longo trajeto na participação e coordenação de projetos relacionados com cadeias de valor, nutrição, alimentação saudável e sustentabilidade. Há algum em particular que queira destacar, pelos resultados interessantes?

Eleger um projeto em especial não é fácil, porque foram muitos, todos eles complementares e bastante diversos. No entanto, em termos de volume, de resultados científicos e do interesse atual ligado às leguminosas e às alterações climáticas, talvez tenha sido o projeto FCT que avaliou o impacto do aumento do CO2 atmosférico na nutrição dos nossos alimentos. Na altura sabíamos que o aumento do CO2 atmosférico está a levar a um descréscimo no teor em proteína, em ferro, em zinco e em outros micronutrientes minerais nos alimentos.

Que variedades analisaram?

Analisámos uma série de variedades de soja e de feijão. Crescê-mo-los em condições de campo e em condições controladas no laboratório e sujeitámos as plantas aos teores de CO2 que iremos ter na nossa atmosfera até 2050. Desafiamos as plantas a crescerem a 600 ppm (partes por milhão) de CO2 ou até 800 ppm de CO2, que são condições que vamos ter no futuro próximo. Em termos de resultados, conseguimos encontrar muita variabilidade nas respostas de diferentes cultivares, ou seja, é possível enveredarmos por programas de melhoramento que incorporem esta resiliência ao elevado CO2. Conseguimos também perceber alguns dos processos que levam a estas variações. Aliás, já publicámos vários artigos científicos interessantes.  

Há um projeto que acabou em setembro e foi dos mais divertidos e mais emblemáticos para o laboratório – o True, no âmbito do qual fizemos imenso trabalho na área das leguminosas: criamos novas receitas, desenvolvemos novos produtos, realizamos análises nutricionais, disponibilizamos ferramentas de apoio à decisão ao agricultor (por exemplo, para saberem como incluir leguminosas nos seus campos de cultivo). Foi um projeto com muito impacto.

Orlando Almeida

Falou em novos produtos? Quais?

Por exemplo novos cereais, massas à base de leguminosas, snaks, preparados para panquecas, donuts vegetarianos… Foi um projeto que envolveu muitas análises sensoriais. E para todos estes produtos também desenvolvemos estratégias de marketing e de business plan para que possam ser adotados pela indústria para implementação no mercado.

“Estamos envolvidos num projeto europeu designado Increase, que pretende reanimar e dar destaque a quatro leguminosas diferentes: grão-de-bico, feijão comum, tremoço e lentilha. Estão a ser desenvolvidos ensaios de campo para testar a resposta de milhares de variedades destas quatro leguminosas a diferentes situações ambientais.”

A Professora Marta lidera o grupo de investigação no laboratório PlanTech. Que projetos estão em curso neste momento?   

Neste momento estamos envolvidos num projeto europeu designado Increase, que pretende reanimar e dar destaque a quatro leguminosas diferentes: grão-de-bico, feijão comum, tremoço e lentilha. É um projeto que tem uma ligação próxima com os bancos de germoplasma europeus e vai permitir trazer para os laboratórios e para o consumidor diversas variedades destas legumisosas. Trata-se de um consórcio europeu coordenado pela Universidade Politécnica de La Marche, em Itália, no âmbito do qual estão a ser desenvolvidos ensaios de campo para testar a resposta de milhares de variedades destas quatro leguminosas a diferentes situações ambientais, não só a sua resistência aos stresses climáticos e ambientais, mas também a algumas situações de stresses bióticos (ataques de pragas). O objetivo é   encontrar variedades adaptadas às diferentes regiões na Europa e, dessa forma, promover o cultivo de leguminosas, porque há uma grande falta de auto-provisionamento de leguminosas na Europa.

A Europa importa 90% das leguminosas que consome. Uma das razões pode ser a falta de variedades adaptadas às diferentes regiões?

Penso que essa é uma das razões, sim. Durante muitos anos foram feitos grandes esforços no melhoramento de culturas importantes, como o trigo e o milho, na perspectiva de uma agricultura mais intensiva e foi-se esquecendo um pouco as legumisosas, que eram culturas muito importantes na Europa há muitos anos atrás. Como as leguminosas foram perdendo o destaque que antes tinham, foram ficando desadaptadas e um pouco esquecidas. O projeto europeu TRUE que terminou no ano passado trabalhou muito esta temática. E o Increase está também a revitalizá-las nesse sentido. Estamos a promover uma experiência de ciência cidadã, ou seja, distribuimos mil variedades de feijão por cidadãos que quiseram entrar nesta aventura para nos ajudar a caracterizar as leguminosas nos seus próprios ambientes. Cada um recebeu seis variedades de feijões para semear no seu quintal, varanda ou jardim. Esta iniciativa pretende também consciencializar as pessoas para a importância do feijão comum. E está agora aberta a segunda edição!

“O projeto Radiant pretende promover a agrobiodiversidade e a inclusão de culturas subutilizadas na Europa” [como algumas variedades antigas de tomate e de cereais].

Creio que está também a coordenar um projeto que pretende dinamizar culturas subutilizadas. Em que consiste?

É verdade, estamos a coordenar um outro projeto que se chama Radiant e que quer dizer Realizando Cadeias de Transformação e Produção Dinâmicas para Culturas Subutilizadas. É um projeto que pretende promover a agrobiodiversidade e a inclusão de culturas subutilizadas na Europa. O nosso foco são as culturas subutilizadas, que dividimos em três grandes grupos: leguminosas, espécies hortícolas e cereais. Relativamente ao grupo das espécies hortícolas, falamos principalmente de variedades antigas de tomate que são muito interessantes em termos organoléticos e nutricionais mas não são as mais utilizadas pela indústria e, por isso, queremos arranjar estratégias para as promover. Neste grupo incluimos ainda as árvores de fruto tradicionais, porque temos todo o interesse em abrir portas aos produtores de fruta tradicional em Portugal que queiram perceber como valorizar estes mercados na Europa. No que respeita ao grupo dos cereais, falamos sobretudo das variedades mais antigas e esquecidas, como por exemplo o milho painço.

Com o projeto Radiant pretendem desenvolver novos produtos?

Sim, mas não só. O projeto Radiant tem vários grupos de trabalho que primeiro irão fazer a caracterização nutricional destas variedades e depois irão tentar desenvolver novos produtos que o consumidor anda à procura. Essas variedades serão produzidas de forma mais sustentável, não necessariamente orgânica, mas com os princípios da agroecologia. Novos produtos tradicionais serão desenvolvidos, como por exemplo pão que em vez de ser feito com farinha de trigo incorpora farinhas de leguminosas ou de variedades antigas de cereais.

Também no âmbito deste projeto será desenvolvido um estudo de análise de ciclo de vida para estes sistemas de produção e estes produtos que incorporem não só os benefícios nutricionais destas culturas, mas também os benefícios ambientais através da quantificação dos serviços de ecosistema que estas plantas podem trazer para o meio ambiente. Por exemplo, no caso das leguminosas, sendo estas fixadoras de azoto atmosférico (através da rizobactérias que com elas formam associações) e promovendo a qualidade e a biodiversidade do solo, as leguminosas apresentam muitos mais benefícios para além dos nutricionais. A análise de ciclo de vida vai fornecer um valor quantitativo que depois pode ser utilizado numa rotulagem que vá promover estas culturas.

“O tomate não é uma cultura subutilizada per se; somos até grandes produtores de tomate, a questão é que há muitas variedades antigas que não estão a ser incorporadas e utilizadas pela agricultura e pela indústria.”

Porque é que as leguminosas e o tomate são culturas subutilizadas? Significa que consumimos pouco?

O conceito de subutilizado é aplicado a uma cultura que é benéfica, promove saúde e tem benefícios ambientais, mas, num determinado contexto, não está a ser produzida ou consumida em quantidades desejáveis. Podem ser variedades de uma mesma espécie. Por exemplo, o tomate não é uma cultura subutilizada per se; somos até grandes produtores de tomate, a questão é que há muitas variedades antigas que não estão a ser incorporadas e utilizadas pela agricultura e pela indústria. Resultado: não há diversidade alimentar, estamos todos a comer o mesmo. Outro exemplo é o feijão; é a oitava cultura mais produzida no mundo e é subutilizado na Europa.  

Tem outros projetos em curso?

Sim, temos também o projeto Stargate, que é coordenando pela Prof Manuela Pintado, aqui da Universidade Católica, e o meu laboratório [PlanTech] faz parte do consórcio. O Stargate é um projeto twining que pretende capacitar o nosso centro de investigação, o CBQF – Centro de Biotecnologia e Química Fina, na área da sensorização e da fenotipagem nos sistemas alimentares, ou seja, a utilização de sensores e de maquinaria de caratacterização das matérias primas ou dos alimentos em larga escala. Quando digo larga escala significa, por exemplo, que mil variedades podem ser caracterizadas para um único traço de forma rápida, expedita e não invasiva. Isto envolve muita ciência na área do processamento de dados e da inteligência artificial, pelo que contamos com a colaboração de Wageningen, na Holanda, do IPK, na Alemanha, e o do INRAE, em França – são centros que têm mais experiência que nós nestas áreas e ao colaborar connosco, promovendo workshops e sessões de treino, estão a dar-nos a oportunidade de formar jovens investigadores nestas áreas.

Outro projeto que está a decorrer atualmente é o Legucon, coordenado pela Carla Santos, do meu grupo. É um projeto de sustentabilidade financiado pelo Instituto Gunbenkian de Ciência intitulado LeguCon, que nos permitiu criar em Portugal o primeiro consórcio para as leguminosas. No primeiro ano de atividades, este projeto apoiou seis agricultores na zona Norte; são agricultores que nunca tinham produzido leguminosas e nós desafiámo-los a dedicar um hectare do seu terreno à produção de leguminosas. Os resultados têm sido muito interessantes. Temos vindo a mostrar que havendo produção também há muito procura. Vale a pena apostar nas leguminosas. Neste segundo ano do projeto vamos repetir o ensaio.

Orlando Almeida

Acha que Portugal tem potencial para ser autosuficiente na produção de leguminosas?

Acredito que sim, porque temos muito boas condições atmosféricas e ambientais para as produzir. Somos um país heterogéneo em termos de condições, mas as leguminosas também o são, ou seja, uma ou mais leguminosas adaptadas a cada região. E agora com a nova reforma da PAC (Política Agrícola Comum) e a estratégia Farm to Fork (Do Prado ao Prato) estão previstos alguns apoios para os agricultores que pretendem incorporar culturas diferentes nos seus sistemas de cultivo. As leguminosas são sem dúvida uma excelente aposta. Acredito mesmo que vai haver um aumento da produção.

Dos projetos que referiu, há algum que envolva engenharia genética? Trabalha com modificação/edição de genes?

Não. Nenhum dos projetos em que estou envolvida neste momento envolve investigação em edição ou modificação genética.

A investigação que desenvolve tem uma componente mais aplicada, de ligação direta com as empresas?

Sim, desenvolvemos projetos mais aplicados, que incluem no processo científico os agricultores, a indústria e os consumidores. São projetos que desenvolvem soluções participativas com estes stakeholders e com resultados que se pretendem de curto e médio prazo.

As alterações climáticas tornaram-se uma preocupação comum a muitos laboratórios de investigação. Desenvolve algum trabalho nesse sentido?

Uma das linhas de investigação que temos estado a desenvolver pretende compreender o porquê dos nossos alimentos estarem a perder nutrientes devido ao aumento do CO2 atmosférico. É uma linha a que pretendemos dar continuidade, até porque temos muitos dados preliminares e alguns já conclusivos.

Outro projeto em que também colaborámos e no qual alguns alunos de doutoramento estão a trabalhar está relacionado com a cultura do tomate. Queremos compreender os mecanismos que permitem ao tomate ser mais resistente à carência de água e à redução de fertilizantes azotados. No fundo, o que queremos saber é se conseguimos produzir variedades de tomate que precisem de menos água e de menos azoto na sua produção.  

Estivemos também envolvidos em três projetos da European Plant Phenotyping Network, cujos objetivos passavam pela caracterização do CO2 elevado no crescimento e desenvolvimento radicular da soja e feijão, o segundo no teste de novos fertilizantes de ferro para leguminosas, e o terceiro focado na caracterização da variabilidade de respostas do tomate a estes dois desafios ambientais. Como se sabe, vamos experienciar carências de água causadas pelo aumento das temperaturas atmosféricas; a seca é um problema cada vez mais grave, pelo que é conveninete começar-se a pensar em dar preferência a variedades que consigam resistir melhor à carência de elementos fundamentais como a água.

Orlando Almeida

Marta Vasconcelos

Licenciada em Biologia pela Universidade de Lisboa e doutorada em Biotecnologia pela Universidade Nova de Lisboa e pelo International Rice Research Institute (IRRI), nas Filipinas. De 2003-2008 foi Investigadora Associada no Children’s Nutrition Research Center, Baylor College of Medicine, nos Estados Unidos. É Professora Auxiliar e investigadora na Escola Superior de Biotecnologia e coordena o grupo de investigação PlanTech. Os seus interesses na investigação focam-se principalmente na área da nutrição de plantas e da genética, mas também no stress biótico e abiótico em espécies agronómicas e florestais. É editora chefe da revista Frontiers in Plant Nutrition e faz parte do Seminário de Jovens Cientistas da Academia das Ciências de Lisboa. É membro do International Plant Nutrition Council e atualmente integra a Direção do Centro de Biotecnologia e Química Fina (CBQF).

É coautora de mais de 70 artigos em jornais científicos internacionais e possui um longo histórico de coordenação e participação em projetos relacionados com diversificação de culturas, cadeias de valor, nutrição de plantas e sistemas alimentares.

(Esta entrevista foi publicada na edição de abril de 2022 da revista Vida Rural)