“Os receios dos transgénicos só existem por causa da má informação”

Maria Salomé Soares Pais acompanhou a evolução da biotecnologia em Portugal e teve um papel muito ativo na criação e consolidação de um programa de biotecnologia vegetal. O seu interesse por esta área surgiu na altura em que começou a desenvolver-se em todo o mundo a cultura de células in vitro.   

Entrevista: Margarida Paredes / CiB

Fotografias e vídeo: Orlando Almeida

Porque se interessou pela biotecnologia vegetal?

Fiz o meu doutoramento em biologia celular de plantas. Na Faculdade de Ciências de Lisboa não havia ninguém a trabalhar em biologia celular, mas eu tinha uma grande a vontade de saber porque é que um organismo vivo tem todo um conjunto funcional, uma vida, uma organização. Nessa altura, em 1966, estava-se em pleno estudo da célula, da descoberta das diferentes estruturas celulares, dos organismos celulares. Comecei então a realizar o meu interesse pelo estudo da célula como unidade básica da vida e depois enveredei pela biologia vegetal. O meu interesse pela biotecnologia surgiu quando trabalhei com orquídeas. Era um período em que, em todo o mundo, começava a desenvolver-se a cultura de células in vitro, uma área da biotecnologia vegetal. Depois de concluir o doutoramento sobre a estrutura e o desenvolvimento da flor das orquídeas, fiz um pós doutoramento em Versailles, no laboratório do professor Morel, que era na altura o grande senhor da cultura in vitro. Aí tive a oportunidade de aplicar a tecnologia in vitro para a produção, em larga escala, de orquídeas. A minha intenção era tornar mais útil e mais atraente tudo aquilo que eu começava a conhecer sobre as orquídeas. No laboratório, mantivemos a área da biologia celular, mas acompanhamos todos os desenvolvimentos da biotecnologia vegetal na sua componente inicial – cultura in vitro -, quer utilizando pedaços de plantas, quer utilizando protoplastos. Fomos seguindo toda a evolução e dedicamos algum trabalho inclusivé à própria propagação in vitro das orquídeas terrestres.

Ao longo da sua carreira liderou vários projetos de investigação na área da biotecnologia vegetal. Há alguns que destaque pela sua importância?

Para mim foram todos muito importantes, mas destacaria três projetos dado o impacto que tiveram na comunidade científica e internacional. Devo dizer que todos os projetos que liderei foram publicados e estão citados extensivamente a nível internacional e vários deram origem a patentes nacionais e internacionais, no entanto, vou referir apenas os que tiveram utilização por parte da comunidade científica ou empresarial. Um deles resultou de uma colaboração com a Universidade de Cornell e estava relacionado com o amadurecimento da papaia. Outro tinha a ver com o isolamento, a clonagem e a utilização das enzimas de coagulação do leite. E outro tinha a ver com a compreensão do papel das citocininas no reverdecimento da espata do jarro das floristas.

Pode falar um pouco de cada um?

O projeto com a papaia surgiu com um aluno de doutoramento da Guiné-Bissau que queria fazer qualquer coisa que servisse o seu país. Propus-lhe que trabalhasse no amadurecimento da papaia, que é extremamente sensível a infeções provocadas pelo vírus Ringspot. O trabalho dele era perceber quais eram os genes responsáveis pelo amadurecimento de maneira a poder controlá-lo melhor. O objetivo era que a papaia amadurecesse melhor na árvore e não tivesse que ser apanhada muito cedo, o que acabava por adulterar o próprio sabor. Este trabalho chegou ao conhecimento de colegas da Universidade de Cornell que se manifestaram interessados em colaborar no projeto. O meu aluno passou então um período na Universidade de Cornell para montar o sistema de transformação e de manipulação genética da papaia com os genes que ele tinha isolado.

Outro projeto que considero muito importante e que também teve uma aplicação prática foi o isolamento da proteína de coagulação do leite. Este projeto foi também origem a uma patente, não só da utilização da enzima natural como tal, como da clonagem e a produção dessa enzima por leveduras. Isto na altura levou à criação de uma microempresa, que mais tarde, devido à falta de financiamento, foi comprada por uma empresa norte-americana que ainda hoje está a produzir a enzima que nós colocamos no mercado.

O outro projeto dizia respeito ao reverdecimento da espata do jarro. Os jarros são muito bonitos quando ficam com aquela parte branca. Mas quando a parte branca começa a morrer e os frutos começam a formar-se lá dentro, essa parte branca passa a verde. E eu comecei a questionar porque razão isso acontecia. Pensei: só se há produção de citocininas, que são hormonas de reverdecimento na frutificação que depois são lançadas para a espata, que era branca e fica verde e protege o próprio fruto. Fizemos o isolamento da própria citocinina que é produzida nos frutos e a partir daí ficamos a saber que se quisermos tornar verde qualquer peça floral branca basta tratá-la com citocinina. Todo o estudo molecular do reverdecimento está publicado.  

A Professora Maria Salomé acompanhou a criação da biotecnologia vegetal em Portugal…

Não só acompanhei como tive uma papel muito ativo na criação e consolidação de um programa de biotecnologia vegetal.

Como era fazer investigação em plantas antes da biotecnologia?

Na realidade, havia algum trabalho feito por uma professora de agronomia (não me recordo do nome), mas era trabalho solto. Quer dizer, começou-se a falar em cultura de células e, portanto, começou-se a fazer cultura de células. O início da biotecnologia em Portugal foi na década de 1970, não foi logo que se criou o programa. O programa de biotecnologia vegetal foi criado depois de várias reuniões com a então chamada JNICT [Junta Nacional para a Investigação Científica e Tecnológica, hoje FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia], que levaram ao entendimento que Portugal tinha que estar em sintonia com os desenvolvimentos a nível mundial. Aí tive o privilégio de estar com o Professor Júlio Maggiolly Novais, que na altura tinha feito o doutoramento em Inglaterra onde tinha trabalhado com cultura de células em fermentador. Portanto, estávamos em condições de começar a ‘tocar o sino’ em Portugal e de criar um programa de biotecnologia vegetal, que depois passou a ser implementado com uma intensidade relativamente grande no meu laboratório. Havia também uma equipa de investigadores do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, que trabalhava muito em fermentadores de leveduras e de microorganismos – as culturas de micoorganismos começaram muito mais cedo do que a biotecnologia vegetal. A biotecnologia vegetal teve um desenvolvimento muito grande com este programa específico de biotecnologia vegetal e foi  a partir daí que começou a haver chamadas para a apresentação de projetos nesta área.

A biotecnologia tem sido fundamental para o progresso que a ciência registou nas últimas décadas. Em Portugal, que progressos assinalaria?

A biotecnologia foi e continua a ser muito importante em Portugal. Os problemas na agricultura são enormes e muitas vezes são provocados por doenças, por vírus, por fungos e por bactérias, ou seja, por tudo o que são agentes patogénicos. A videira, por exemplo, tem muitos problemas de infeção por vírus e era preciso sanear as videiras que são colocadas no campo, até para que elas tenham uma melhor produtividade e não sejam afetadas por esses vírus. Com o início da biotecnologia, ou seja, da cultura in vitro,  foi possível montar a técnica de purificação, digamos assim, das plantas por cultura dos meristemas (é a parte final do caule, a partir do qual a planta continua a crescer no ano seguinte). Essa parte, na maioria dos casos, não é afetada por vírus e pode ser cultivada in vitro, pelo que as plantas que se produzem são isentas de vírus. Portanto, este seria um dos grandes avanços na criação de porta enxertos ou de enxertos livres de vírus que podem ser utilizados de imediato. Existe tecnologia, quer em empresas, quer em laboratórios, só para fazer a eliminação de vírus.

Depois foram desenvolvidos vários projetos que foram direcionados para empresas ainda nesta primeira fase da biotecnologia (de utilização apenas da cultura in vitro), que consistiam na cultura de clones selecionados, que ainda hoje se faz. Quer dizer, hoje em dia já ninguém pensa em ciência quando faz por exemplo a multiplicação clonal de um genótipo de grande interesse. Penso que, mesmo nos alvores da aplicação destas técnicas iniciais de biotecnologia, tem havido progressos no próprio melhoramento, na conservação dos genótipos e na estabilização dos genótipos, salvaguardando depois as alterações que podem acontecer, quer por mutações que serão induzidas, quer por alterações por força da cultura. É o mesmo que fazer uma estacaria – tentamos preservar aquele genótipo (fazendo estacaria) e não a semente, porque a semente tem uma grande variabilidade. Aqui é a mesma coisa. Imagine que tem uma árvore difícil de regenarar ou de produzir raízes… A biotecnologia permite dar a volta e encontrar uma maneira de enraizar mesmo essas estacas que são recalcitrantes ao enraizamento. Portanto, já aí é uma vantagem desta biotecnologia inicial.

Quando depois surge a manipulação genética, a sociedade ficou muito impressionada com a introdução de genes estranhos nas plantas

Impressionada e renitente, talvez por não ter havido um acompanhamento dos desenvolvimentos científicos. E porquê? Porque o gene estranho é o gene do Bacillus thuringiensis (Bt). Mas felizmente que isso existiu, porque se não tivesse existido se calhar não se teriam verificado os desenvolvimentos a seguir. Primeiro porque percebeu-se que era possível introduzir genes estranhos nas plantas. Depois, porque sendo um gene estranho, as pessoas começaram a questionar se esta tóxina seria nefasta para o humano que consome a planta. Do questionamento à contestação foi um passo. Começa-se então a ter receio da manipulação genética.

Receio porquê?

Os receosos achavam que se a proteína produzida pelo gene da bactéria Bacillus thuringiensis (que se introduz no milho geneticamente modificado) é tóxica para os lepidópteros (insetos), também pode ter efeitos nefastos e tóxicos para o ser humano. Um outro argumento que surgiu é que se este gene é tóxico, se está a ser expresso na flor do milho e depois na semente, ele pode ser transmitido às plantas que estão à volta, ou seja, pode ser introduzido por polinização nas plantas em redor dispersando-se assim na natureza.  Tomaram-se medidas para minimizar esses problemas, criando isolamento. Mas entretanto já se tinha gerado uma onda anti-OGM muito grande.

Os receios surgiram assim que se começou a ouvir falar em OGM (Organismos Geneticamente Modificados)?

Não foi logo. Foi quando chegaram ao mercado. Hoje há quase um milhão de hectares cultivados com plantas transgénicas.

Têm fundamento esses receios?

Não. Os receios só existem por causa da má ou falta de informação. Há quantos anos existe milho transgénico? E quem fala em milho, fala em soja, em tomate. Esses produtos estão no mercado há muito tempo, são produzidos em países fora da União Europeia (na UE só se pode produzir milho Bt e atualmente os únicos países produtores são Portugal e Espanha). Se o seu consumo provocasse efeitos nefastos para o ser humano, creio que já se teriam feito sentir.

Hoje podemos ignorar os OGM, mas não nos podemos esquecer que o melhoramento vegetal é necessário e que, no fim de contas, ele pode ser acelerado por todas as tecnologias que temos ao nosso alcance. Hoje em dia é praticamente possível sequenciar num dia ou em poucos dias genomas muito complexos e a um preço muito razoável. O que é facto é que nunca foi comunicado à sociedade qualquer manipulação genética de silenciamento ou de sobreexpressão  de um gene resultante daquilo que cada planta tem no seu genoma. Ou seja, se eu conheço o genoma de um tomateiro que é resistente ao mal zul do tomateiro e outro que não é resistente, e se eu tenho o genoma do resistente, eu posso saber qual é o gene ou grupo de genes, comparativamente com o outro, que é responsável por essa resistência. O que se fez a seguir foi utilizar este conhecimento da biologia molecular e do isolamento dos genes para sobreexprimir (se o gene é de resistência) ou silenciar (se o gene é de não resistência) determinado gene. Aqui não estamos a mudar nada, não estamos a introduzir nada que seja estranho à planta, estamos apenas a exprimir ou a silenciar uma caraterística de um gene ou de um grupo de genes. Ou seja, estamos apenas a lançar mão daquilo que a natureza nos oferece. Agora está aí o CRISPR, uma técnica de edição do genoma, que está a revelar muitas potencialidades na agricultura.

Acha que as novas técnicas genómicas como a edição genética podem ser rejeitadas, tal como aconteceu com os OGM, na União Europeia?

Acho que existe esse risco, basta haver má informação – os ambientalistas já estão a dizer que as tecnologias que permitem editar o genoma são os novos transgénicos. Quem quiser deturpar a informação, deturpa. E quem não tem um conhecimento científico rigoroso destas matérias facilmente acolhe a má informação. Sabe, as pessoas geralmente temem aquilo que desconhecem. Tem que haver uma informação rigorosa, com dados científicos rigorosos, de maneira que a sociedade seja devidamente informada. Cada vez mais, as pessoas acreditam no que é mais bombástico, no que é mais fantástico. Hoje todo o mundo fala em biologia de síntese. O que é a biologia de síntese se não biotecnologia ou uma manipulação genética refinada? A biologia de síntese pode mudar o genoma de um microorganismo, pode sintetizar genomas em laboratório, pode construir o DNA conforme se quer e produzi-lo, e depois pode fazer músculo, pode fazer fibra para o que se quiser, para sapatos por exemplo. Há fibras produzidas a partir do isolamento de genes das fibras das aranhas, que têm uma resistência enorme e podem ser produzidos por biologia de síntese.

Voltando aos OGM, é claro que temos de ter sempre o princípio da precaução, temos de estar vigilantes. Mas nisso a União Europeia peca por excesso. Alguns regulamentos que a UE produziu já deviam ter deixado de existir. A única coisa que não pode ser ignorada é que o conhecimento que se transmite tem que ser muito rigoroso.

Os cientisas deviam saber comunicar melhor?

Sim, mas ainda não há essa tendência. Os cientistas ainda se fecham muito nos seus laboratórios. Comunicam muito bem com os seus pares, mas com o público em geral não. Da parte dos jornalistas também há alguma responsabilidade, porque além de serem poucos os que sabem comunicar ciência, têm preferência por abordagens mais bombásticas. Isto acontece em todo o mundo, não é só em Portugal.

Considera que a segurança alimentar pode depender da biotecnologia vegetal, concretamente, das novas tecnologias como a edição do genoma?

Não digo que seja o fator fundamental, mas que depende muito depende. Se pensarmos como o mundo está a ser ameaçado pelas alterações climáticas, que provocam as catástrofes a que assistimos, com perdas totais de produção, temos de ter maneira de rapidamente contornar a situação. Não podemos alimentar o mundo se não tivermos produção alimentar suficiente. Por exemplo, a videira e a pereira são duas cultivares importantíssimas para Portugal do ponto de vista económico, mas são de uma sensibilidade enorme às alterações climáticas, pelas infeções  e por tudo e mais alguma coisa. É claro que podemos deixar de beber vinho e de comer pera que não morremos por causa disso. Agora, se não tivermos arroz ou mandioca por exemplo, que não crescem se houver encharcamento ou se houver seca, ou outro alimento que constitu a base alimentar dos povos mais desprotegidos, não conseguimos alimentar quem precisa.

Em alguns países há culturas que ficam completamante dizimadas por causa do encharcamento e os terrenos que ficam encharcados depois não se podem utilizar. Portanto, se pudermos, com toda a tecnologia que temos hoje, produzir plantas mais tolerantes ao encharcamento, nós podemos rapidamente recuperar esses terrenos. No caso do nosso Alentejo, se continuarmos com as secas que temos vindo a assistir, os arrozais não vão resistir por muito tempo. Se tivermos arrozais mais tolerantes à falta de água, não teremos esse problema. A solução não é esperar por hibridações naturais que demoram dezenas de anos para criar um genótipo resistente. Se temos na mão tudo aquilo que a biotecnologia nos dá, em termos do bem comum somos obrigados a utilizar os meios que temos ao nosso alcance. Repare, para fazer uma variedade de arroz mais tolerante à secas são necessários 20 anos ou mais. Não podemos esperar pelos resultados do melhoramento convencional, não temos tempo para isso. Não estamos em condições de esperar.

Se a União Europeia mantiver a sua política demasiado restritiva em relação às novas técnicas genómicas, onde se inclui as tecnologias de edição do genoma, como poderão os agricultores europeus fazer face à concorrência de outros países onde a utilização dessas tecnologias é autorizada?

Os agricultores portugueses e europeus não têm capacidade de fazer face à concorrência. Mas já hoje a Europa vive da importação. E de onde importa? De países onde as tecnologias como os OGM e a edição genética são autorizadas, do Brasil, da Argentina, dos Estados Unidos, entre outros. Gosto muito do tomateiro que cheira muito bem, mas, se quer que lhe diga, tanto me faz que seja transgénico ou não, que seja produzido em hidroponia ou não (a maior parte hoje é produzida em hidroponia). Não me faz impressão nenhuma que o tomate seja modificado, ou seja, melhorado por silenciamento ou por outras tecnologias que ainda não estão no mercado, como o tomate resultante do sistema CRISPR. Já tenho dito muitas vezes, prefiro comer uma pera em que foi silenciado ou sobreexpresso o gene da podridão do que comer uma pera que é pulverizada onze vezes ou mais com pesticidas.  

Maria Salomé Soares Pais

Doutorada em Biologia, foi Professora Catedrática  na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Fundou e dirigiu vários centros de Investigação, privilegiando as áreas de Biologia Celular e Molecular e Biotecnologia Vegetal.

Foi membro de vários programas inter-governamentais e da Comunidade Europeia. Fundou e foi  presidente da Comissão executiva do centro de investigação e formação tropical. Ao longo da sua carreira académica foi autor /co-autor de mais de 400 artigos científicos e orientou/co-orientou 51 dissertações de doutoramento e 43 de mestrado. 

Foi distinguida com: Chevalier dans l’ordre des Palmes Académiques – French Government (1979), Prize of the best Conference in the scientific meeting on Gametic Embryogenesis held in Finland (1998) ; Outstanding Professional Award  – ABI – USA  (2001) ; American Order of  Merit (Representing Portugal) – ABI – USA (2009) ; Woman of the Year (Representing Portugal) – ABI – USA (2009) ; Prize Corticeira Amorim (Best Science) – (2010) ; Comendador da ordem do Infante D. Henrique  (2015) ; Membro honorário da Ordem  dos Biólogos (2016).

É membro efetivo da Academia das Ciências de Lisboa (ACL). Exerceu o cargo de Secretária-geral da ACL desde 2011 a 2021. Atualmente é Presidente do Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa.