Dos equívocos sobre as plantas transgénicas

Paula Duque e Vasco Barreto, investigadores

Com a progressiva secularização do mundo ocidental, tem surgido um entendimento quase religioso do mundo natural difícil de conciliar com a instrumentalização da natureza essencial às sociedades humanas. Apesar das contribuições decisivas para a nossa saúde e alimentação, tendemos a associar à Genética a noção de eugenismo e de interferência na ordem natural das coisas. Mas desde o advento da agricultura que o que entendemos por mundo natural vem sendo redefinido pela selecção artificial: para garantir a sua sobrevivência, o Homem transformou radicalmente as espécies agrícolas, como facilmente perceberá quem por exemplo comparar o milho cultivado com o seu ancestral natural (o teosinto) ou investigar a artificialidade do montado alentejano. Prolongando esta tradição milenar, a tecnologia que permite gerar plantas transgénicas veio no final do século XX facilitar imensamente a manipulação dos genomas e exacerbar os receios dos que defendem uma visão imaculada da natureza.

Os genomas das plantas modificam-se e perpetuam-se essencialmente de quatro formas: 1) por selecção natural ou fixação neutra nas populações de variações espontâneas no ADN (a natureza imaculada a funcionar); 2) por selecção artificial de variedades naturais (as técnicas tradicionais da agropecuária, nomeadamente o cruzamento selectivo); 3) por selecção artificial de variedades induzidas pela acção de agentes mutagénicos, tais como as radiações ou certas substâncias químicas; 4) através de técnicas de biologia molecular, que nas últimas décadas têm produzido as plantas “transgénicas”. Em 2012, uma nova abordagem molecular, conhecida pelo acrónimo CRISPR e que valeu às suas inventoras o Nobel da Química de 2020, veio revolucionar a edição do genoma.

Ao contrário das tecnologias de transgénese convencionais, que modificam o genoma pela introdução de ADN exógeno (como quando um autor introduz na sua obra uma passagem plagiada), a CRISPR permite editar o genoma de modo extremamente preciso, que pode ir ao detalhe de apenas alterar um nucleótido (uma letra, se mantivermos a metáfora do livro). Seria até possível defender que, em muitos casos, a tecnologia CRISPR não produz transgénicos, no sentido em que pode modificar o genoma sem introduzir ADN exógeno. É verdade que a CRISPR não atingiu ainda o grau de perfeição que torne a edição perfeitamente limpa, mas o ritmo da inovação tem sido de tal ordem que não será optimismo exagerado antecipar que o atinja nos próximos anos.

Em 2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia rejeitou aliviar a regulação estrita que impôs a organismos geneticamente modificados (OGM) para as variedades produzidas por CRISPR. Ao não facilitar a exploração desta tecnologia, a Europa na prática está a excluir os institutos com financiamento público, “startups” e pequenas empresas, deixando às grandes multinacionais e outros operadores fora da sua jurisdição o monopólio do uso da CRISPR para fins agrícolas. Perderá assim terreno para competidores directos com um grau de sofisticação biotecnológica equivalente ou já superior, como os EUA e a República Popular da China, onde há menos restrições à exploração destas tecnologias. A derrota nesta corrida terá inclusive um travo amargo, quando a Europa começar a importar alimentos que passarão por variedades naturais ou produzidas por mutagénese, pois não será tecnicamente possível perceber que, na verdade, foram geradas pela tecnologia CRISPR.

Apesar do feroz activismo antitransgénicos e da vontade de muitos em associar os transgénicos a uma tragédia, décadas de investigação não produziram um estudo credível que indique efeitos negativos dos OGM na saúde humana. A possibilidade de editar genomas de forma mais limpa e significativamente mais simples e acessível vem agora ajudar comunidades de cientistas, empreendedores e agricultores a gerar soluções para garantir a alimentação da população mundial em expansão num contexto de alterações climáticas, conferindo maior autonomia de produção às populações locais e minorando a pegada ecológica associada ao transporte de alimentos, e contribuir para a sustentabilidade dos ecossistemas, produzindo variedades agrícolas que permitam reduzir drasticamente a utilização de pesticidas e fertilizantes. Vem ainda democratizar as tecnologias de melhoramento vegetal e permitir a pequenas empresas beliscar o poderio instalado e crescente das multinacionais agrícolas, se não forem criados entraves sem fundamento científico. Tenhamos presente que a demonização das plantas transgénicas nos “media” pode ter criado uma acidental aliança entre a opinião pública e perversos interesses económicos instalados.

Paula Duque, Investigadora em Biologia Molecular, Instituto Gulbenkian de Ciência

Vasco Barreto, Investigador em Biologia Molecular, Centro de Estudos de Doenças Crónicas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa

* Este artigo de opinião foi escrito a pedido do CiB aos autores e publicado no jornal Público a 26 de março de 2021.