“A pandemia alertou-nos para a necessidade de produzir mais alimentos”

Sem o melhoramento de plantas, a agricultura não alimentaria meio mundo. Esta técnica ancestral permitiu-nos ter culturas com as características necessárias para produzir mais, mas já não é suficiente. Com as pragas e doenças a aumentarem e a surgirem em locais onde nunca vistas, é urgente encontrar soluções. Por isso, o melhorador de plantas Benvindo Maçãs, que dirige há onze anos a antiga Estação Nacional de Melhoramento de Plantas do INIAV, em Elvas, acolhe com entusiasmo o InnovPlantProtect, o único Laboratório Colaborativo em Portugal que está a tentar desenvolver produtos de base biológica para controlar pragas e doenças que destroem culturas mediterrânicas e para as quais não existem soluções no mercado.

Entrevista: Margarida Paredes /CiB
Fotografia e vídeo: Joaquim Miranda

Esta é uma casa de referência para a agricultura nacional. Ao contrário de muitos laboratórios, que produzem conhecimento fundamental, a ENMP produz conhecimento para aplicação. Que trabalho desenvolve?
Fazemos melhoramento genético de plantas, que consiste basicamente na manipulação genética do genoma das plantas através de metodologias convencionais. Ou seja, recombinamos genomas para encontrar novas combinações genéticas mais adequadas para aquilo a que estão destinadas, beneficiando, desta forma, os sistemas agrícolas.

Com que espécies de plantas trabalha?
Com as que estão incluídas nos grandes sistemas de agricultura mediterrânicos, nomeadamente cereais de outono e inverno (trigo rijo, trigo mole, triticale, cevada e aveia), oliveira, grão de bico, ervilha, fava e lentilha) para alimentação humana), gramíneas, culturas forrageiras e espécies para prados (destinadas a alimentação animal).

Por que motivo é preciso melhorar as plantas?
Para produzir mais alimento. Não sei se sabe, mas houve um frade no Séc. XVIII, chamado Thomas Maltus, que postulou que com o crescimento da população e o aumento da procura de alimentos não seria possível ao mundo encontrar uma solução para alimentar toda a gente, a menos que houvesse uma forma de controlar a população, mas a ciência foi sempre encontrando soluções para vencer o problema da falta de alimento, sobretudo graças a dois fatores: ao melhoramento genético – quer dizer, à melhoria da condição e do comportamento genético das culturas, que passaram a estar melhor adaptadas e por isso a produzir mais – e também às novas formas de fazer agronomia com essas culturas. Há estudos que indicam que 50% do aumento da produção de alimentos deve-se ao melhoramento genético e os outros 50% devem-se à aplicação de nutrientes, fitofármacos, novos métodos de rega e outras soluções. O melhor exemplo da introdução de variedades com maior potencial genético de produção são os resultados obtidos durante a Revolução Verde, no final dos anos 60 e princípios dos anos 70 do século passado, que se traduziram no aumento brutal da produção de trigo, milho e arroz em países onde antes havia muita fome, sobretudo na Ásia e na América Latina.

Como é que isso aconteceu?
Através de métodos de recombinação genética, em que se cruza plantas distintas da mesma espécie, e de processos rigorosos de avaliação e de seleção para identificar variedades com maior produtividade. A Revolução Verde é muito ilustrativa daquilo que é possível fazer com o melhoramento genético. Por exemplo, relativamente ao trigo, tínhamos 50 ou 60 variedades com 1,50 metros de altura e a simples introdução de um gene que permite reduzir a altura da palha permitiu-nos passar a explorar o trigo de outra forma. O processo é vagaroso, consegue-se passinho a passinho, mas é eficaz. Deita por terra aquilo que o frade Thomas Maltus havia postulado.

Imagino que quanto mais baixos forem os pés de trigo, menor a possibilidade de quebrarem antes da colheita e essa é a vantagem. Mas onde encontraram trigo com esse gene, digamos, “anão”.
Curiosamente a sua descoberta deve-se aos aviadores americanos que, quando sobrevoavam o Japão na Segunda Guerra Mundial, verificaram que os pés de trigo nesse país eram muito baixos. Então pegaram nessas sementes e levaram-nas para os Estados Unidos. Depois houve alguém no México que cruzou o trigo japonês e o trigo de 1,50 m de altura, conseguindo assim reduzir a altura da palha. Isto para dizer que, no mundo, existe uma grande variabilidade genética, é preciso é recombinar, encontrar o genótipo, o tipo de planta para selecionar o gene específico que tem característica que queremos.

Todas as plantas precisam de ser melhoradas?
Sim, todas. As exigências da agronomia e da produção vão-se alterando, porque precisamos não só de produzir mais como também de produzir com melhor qualidade e com maior sustentabilidade. Por outro lado, embora tenhamos alcançado progressos contínuos, os principais inimigos das culturas, como as pragas e as doenças, não dormem, alteram-se. Os trigos que foram cruzados com os trigos japoneses eram muito suscetíveis às doenças e por essa razão foi necessário encontrar genótipos resistentes. Portanto, já nessa altura se conseguiram também grandes progressos no combate a pragas e doenças através de processos de melhoramento genético convencional.

Que técnicas são utilizadas no melhoramento genético convencional?
Principalmente técnicas de hibridação artificial. No processo de melhoramento utilizamos a recombinação (através do cruzamento entre duas plantas distintas da mesma espécie) a seleção e avaliação. Como disse, é um processo realmente moroso, complicado e exigente do ponto de vista científico e tecnológico, mas muito eficaz na introdução de genes de resistência nas plantas.

Mas já existem novas ferramentas de base molecular que permitem acelerar esse processo. Porquê mantê-lo?
É verdade, mas uma andorinha não faz a primavera. A primavera faz-se no campo, resulta da interação daquele genótipo que introduzimos na planta com o ambiente em que vivemos. Aliás, por isso é que estamos em constante mutação e o mesmo acontece com as pragas e doenças. Este é um problema grave e tende a piorar com as alterações climáticas. O aumento médio global da temperatura é um desafio enorme para o melhoramento de plantas.

Então, as Novas Tecnologias Genómicas como a edição do genoma não têm lugar na ENMP. É contra ou a favor?
Não sou nada contra essas tecnologias, pelo contrário. Têm enormes benefícios, porque tornam o processo de melhoramento mais eficiente, mais rápido e muito mais dirigido, mas também é certo que não substituem o melhoramento convencional feito por recombinação do genoma, que é o que fazemos aqui. São ferramentas complementares. Por que é que não utilizamos a edição do genoma? Bem, na verdade, temos um departamento de Biologia Molecular que nos permitiu começar a pensar na introdução de novas ferramentas de base molecular na seleção. Aguardamos ansiosamente que isso seja possível, mas sabemos que são ferramentas muito caras e não tem havido financiamento. Tem-se financiado muita ciência e avançado muito nessas tecnologias em termos de conhecimento fundamental, mas a aplicação ainda é residual.

Por falta de investimento suficiente das multinacionais?
Sim, sobretudo por essa razão. As empresas multinacionais investem nas culturas que se vendem mais no mundo, nomeadamente milho, colza, algodão e soja, não é nas culturas mediterrânicas, que são aquelas com que trabalhamos.

Em todo o caso, a legislação na União Europeia também inibe a expansão da utilização da tecnologia nas culturas mediterrânicas.
Sim, é verdade. A Europa continua muito fechada, mas entra em contrassenso quando permite a importação de produtos resultantes de tecnologias como os OGM e proíbe a sua produção. O milho Bt é a única exceção em Portugal e Espanha.

Acha que os agricultores revelam mais interesse pelo trabalho que se faz ao nível da investigação, especificamente da biotecnologia? Pergunto, porque, com as alterações climáticas, as novas pragas e doenças emergentes, o aumento da população mundial e a pandemia, o abastecimento de alimentos já não é uma garantia. Amanhã pode faltar comida.
Com o conhecimento que vamos tendo dos avanços científicos nesta área, os agricultores têm esperanças, creio que fundadas, nestas novas tecnologias. Agora, não nos podemos esquecer da nossa condição mediterrânica em termos de ambiente que condiciona a agricultura e a produção. Não nos podemos esquecer de uma corrente vinda dos consumidores relativamente à origem dos alimentos e à origem de processos mais sustentáveis, mais amigos do ambiente, e também não nos podemos esquecer do principal serviço de ecossistema da agricultura: a produção de alimentos. Também produz fibras, combustíveis, etc., mas o principal serviço de ecossistema da agricultura é produzir alimentos. Essas ondas de consumidores, muitas vezes com recurso a informação mais ou menos manipulada, apontam muito para a defesa da paisagem, para a proteção da biodiversidade, mas a verdade é que não vejo ninguém mais interessado na proteção da biodiversidade, do solo e do ambiente do que os agricultores.

Quais são os principais desafios dos agricultores, atualmente?
São as grandes desigualdades no mundo a nível do sistema de produção, porque há países onde determinadas normas ou não se aplicam ou não são respeitadas, o que faz com que sejam mais competitivos dos que os países europeus. O que é que os consumidores querem? Querem produtos mais baratos. Sabe qual é o produto mais vendido? É o 50% de desconto. Mas há uma coisa que a Covid 19 nos trouxe, trouxe-nos a consciência da necessidade de produzir.

A instalação do novo CoLab InnovPlantProtect no INIAV de Elvas e a parceria entre ambos pode definir o modo de se fazer agricultura num futuro próximo?
Abraçamos o projeto do InPP de uma forma muito carinhosa e entusiasmada porque passaremos a ter disponíveis algumas soluções inovadoras [biopesticidas] para combater um dos maiores problemas dos sistemas agrícolas, que são as pragas e doenças. Além disso, vai permitir-nos ir mais além na investigação e na evolução que se pretende para o próprio melhoramento genético. Mas, como disse há pouco, uma andorinha não faz a primavera.

Além de biopesticidas, o InPP também vai desenvolver plantas resistentes a pragas e doenças através da tecnologia de edição do genoma CRISPR-Cas9. No panorama agrícola atual, que importância tem o InnovPlantProtect?
Muita, porque, por um lado, vai possibilitar aos agricultores o acesso a soluções que vão corrigir as fragilidades da produção agrícola e, por outro, vai permitir ao INIAV a introdução dessas tecnologias nos seus programas. É isso que os produtores e as empresas pretendem, que o InPP, em colaboração com o INIAV e outras entidades, consiga encontrar soluções finais para problemas muito específicos da agricultura.

Que comentários lhe merecem as Estratégias “Do Prado ao Prato” e “Biodiversidade 2030” da Comissão Europeia no que respeita à adoção da biotecnologia?
A biotecnologia não é uma coisa à parte que vai resolver tudo. É uma ferramenta fundamental, porque ajuda a resolver os problemas da agricultura mais rapidamente e com outro tipo de eficiência, mas é complementar às técnicas que já existem.

Benvindo Maçãs é engenheiro agrícola com especialização em Recursos Genéticos Vegetais, Melhoramento Genético e Sistemas de Agricultura Mediterrânica. Dirige há onze anos a antiga Estação de Melhoramento de Plantas do INIAV, em Elvas, tendo como áreas de investigação correntes o melhoramento e adaptação de espécies e variedades às alterações climáticas, a definição de critérios de seleção baseados em metodologias de ecofisiologia (fenotipagem) para identificação de genótipos adaptados aos constrangimentos ambientais mediterrânicos e o potencial genético de produção vs adaptação.

*Esta entrevista foi originalmente publicada na edição impressa e online da revista Fruta Legumes e Flores, em Outubro de 2020