
Utilizando diversas metodologias que incluem a técnica de edição genética CRISPR-Cas9, a investigadora Isabel Abreu está a desenvolver um trabalho que poderá vir a ter aplicação nas variedades de arroz portuguesas. No âmbito do projeto Filligrain-Protect, a cientista pretende proteger o enchimento do grão de arroz de stresses ambientais, como a falta de água. O objetivo é que os agricultores portugueses possam vir a produzir arroz em condições de não alagamento.
Entrevista: Margarida Paredes / CiB-Centro de Informação de Biotecnologia
Fotografia e vídeo: Orlando Almeida
Lidera a equipa de investigadores do Laboratório de Regulação do Proteoma em Plantas (PRPlants) desde que foi criado, em 2015, no ITQB NOVA. Não é um nome clássico para um laboratório, pois não?
Não é nada clássico. Aliás, pode até parecer estranho. O nome do laboratório surgiu da minha vontade de perceber como é que as proteínas funcionam como um todo. As proteínas acabam por ser os efetores das células e para poderem funcionar como um exército, ou seja, para poderem fazer alguma coisa, têm de estar muito bem organizadas. Eu queria perceber essa regulação, perceber como é que se conseguem processos tão complexos como os vários processos celulares.
Faz investigação fundamental ou aplicada?
Nós fazemos esssencialmente investigação fundamental com uma preocupação de potencial aplicação. Devido a uma aproximação cada vez maior ao setor agrícola, principalmente à fileira do arroz, tenho sentido a necessidade de que aquilo que fazemos no laboratório tenha impacto. Acredito que, para caminharmos para uma produção alimentar sustentável, temos que trabalhar em cima do conhecimento adquirido. Tem de haver uma sinergia entre a investigação que fazemos (mesmo que seja fundamental) e as necessidades do setor. A diferença de quando comecei para o que faço agora é que na altura interessava-me primeiro pelos mecanismos que estava a estudar e depois pensava na aplicação que o meu trabalho poderia ter. Hoje faço ao contrário: primeiro comunico com os stakeholderes para saber quais são as suas necessidades e problemas e, a partir daí, desenvolvo a investigação.
Que projetos de investigação estão em desenvolvimento no PRPlants?
Neste momento, o nosso principal projeto chama-se Filligrain-Protect, que tem como objetivo proteger o enchimento do grão de arroz do stresse ambiental, porque essa é uma altura em que o arroz é muito sensível a alterações ambientais.
Trabalhamos com várias proteínas que desempenham um papel crucial na regulação do crescimento da planta e no equilíbrio entre a energia que a planta coloca no seu crescimento e a energia que ela necessita para responder a alterações ambientais. Essas proteínas conseguem modular o trade-off entre esses dois processos. Ao estudarmos proteínas-chave envolvidas nessa regulação, podemos modelar as suas atividades para obter efeitos específicos. Isso tem aplicações biotecnológicas significativas. Por exemplo, ao investigarmos proteínas como as cinases dependentes de cálcio ou as proteínas DELLA (que desempenham várias funções intracelulares), conseguimos compreender os mecanismos que permitem à planta ajustar o seu metabolismo em resposta a mudanças ambientais. Um dos nossos genes alvo é uma cinase dependente de cálcio. Quando esse gene é desativado, as plantas conseguem extrair mais fosfato do solo. Estamos a ver se essa alteração confere vantagens às plantas, especialmente em condições desafiantes, como a extração de nutrientes do solo durante períodos de não alagamento.
O objetivo é tornar a produção de arroz mais sustentável?
É exatamente isso que pretendemos. Uma aluna minha de doutoramento está só focada no estudo detalhado dos mecanismos regulatórios dessa proteína específica. Ela consegue perceber alterações ambientais que despoletam sinais de cálcio (o cálcio é um sinalizador celular nas plantas) e ao interpretar essas mudanças ambientais pode perceber qual é a resposta das plantas. E as cinases dependentes de cálcio (CDPKs) conseguem fazer isso, elas têm a notável capacidade de interpretar alterações no ambiente e desencadear respostas nas plantas. É precisamente essa habilidade que confere a essas proteínas um enorme potencial biotecnológico. Nesse caso em particular, as CDPKs regulam a homeostase da aquisição e distribuição de fosfato nas plantas. Isso é crucial, uma vez que o fósforo (ou fosfato) é um dos macronutrientes mais difíceis de obter. O fósforo é extraído do solo, o que tem um impacto ambiental significativo, e, para além disso, é um recurso finito. A sustentabilidade na agricultura é uma preocupação crescente, especialmente quando se trata da produção de fertilizantes. Ao compreendermos os mecanismos regulatórios das CDPKs e ao conseguirmos que as plantas giram melhor os nutrientes de que precisam, podemos reduzir a necessidade de adicionar fertilizantes, contribuindo, desta forma, para uma produção mais eficiente e ambientalmente responsável.

Pelo que percebi, o Filligrain-Protect já é um projeto praticamente aplicado. Disse que o grande objetivo deste projeto é introduzir uma determinada característica que protege o enchimento do grão de arroz do stresse ambiental. O arroz português vai beneficiar dessa proteção?
A aplicação será feita em variedades de arroz nacionais já fora do contexto do FilliGRAN-PROTECT. Graças ao Programa Nacional de Melhoramento do Arroz, o nosso arroz carolino não só está adaptado às características edafo-climáticas específicas de Portugal, como também atende às nossas necessidades, o que tem um impacto social significativo. Se agora decidíssemos introduzir novas características, se voltássemos aos parentais e iniciássemos novamente cruzamentos para obter um arroz com a característica que estou a propor, provavelmente não encontraríamos um arroz como o Caravela (que em breve estará disponível comercialmente). O Caravela é um produto diretamente resultante do Programa de Melhoramento do Arroz. Este programa já registou três variedades de arroz carolino no Catálogo Nacional de Variedades. Estamos particularmente interessados em duas delas: o Caravela e o Ceres. O Ceres chamou-me especialmente a atenção, pois já demonstrou um bom desempenho mesmo em condições de solo não alagado.
Quando diz que quer melhorar a resposta da planta a determinadas condições ambientais está a referir-se à falta de água, à falta de condições de alagamento?
Sim. A falta de água é uma grande preocupação no Mediterrâneo. Se continuar assim, daqui a dez anos não conseguiremos fazer crescer o arroz exatamente como fazemos agora, porque não haverá água para alagar todos os campos. A água é uma base muito importante para conseguirmos manter a produtividade de arroz. E se não há água no campo, o arroz vai sofrer amplitudes térmicas muito maiores – a água não está lá só para alimentar o arroz, também está a criar uma folha de tampão térmico. Portanto, também temos que proteger a planta contra maiores amplitudes térmicas. Um arroz que não tenha a folha de água vai ter um solo com características diferentes, porque, de repente, fica num ambiente aeróbio (passa a haver ar no solo) e com isso altera-se o estado de disponibilidade de alguns dos nutrientes, que oxidam, ficando menos acessíveis para as plantas. Para se conseguir adaptar o arroz de modo a que ele cresça sem ser em condições de alagamento, há uma série de fatores que têm de ser pensados. Por exemplo, o nosso projeto [Filligrain-Protect] estuda quatro cinases dependentes de cálcio (CDPKs): uma que nos dá tolerância à temperatura, principalmente ao frio (porque, por exemplo, podemos ter que fazer crescer arroz mais a norte); outra que facilita a extração de nutrientes do solo; e mais duas que estão envolvidas no import de açúcares para o grão. O grão de arroz tem como maior componente o amido, portanto, quando o grão está a encher é preciso fazer um import de açúcar considerável e isso também é feito de forma muito regulada. Portanto, neste projeto já estamos a tentar proteger o enchimento das amplitudes térmicas, garantindo que a planta consegue ir buscar nutrientes de forma mais eficiente e que os recursos necessários para o enchimento do grão, na altura certa. Esse conhecimento tem aplicação também na eventual adaptação de uma variedade de arroz a crescer em condições de não alagamento constante, porque permitiria dotar essas plantas de maior capacidade de lidar com os desafios que retirar a água do campo irá criar.
Ou seja, os agricultores já não terão de abandonar os campos de cultivo a meio da campanha no caso de não terem água para alagar os campos?
Exatamente. Isso aconteceu no Sado, lembra-se? Se uma variedade de arroz tiver as características certas que permitam ao agricultor regar, por exemplo com pivô, para conseguir terminar a campanha, essa poderá ser uma alternativa que permita manter a produção. Ou até fazerem crescer o arroz noutras zonas que não sejam só as zonas de alagamento, permitindo, por exemplo, fazer rotatividade com outras culturas. Portanto, o que é que eu quero? Quero criar conhecimento necessário e ajudar a criar soluções para depois os agricultores poderem tomar decisões sobre as suas práticas agrícolas sustentadas por conhecimento científico. Esse é o meu grande objetivo.

Utiliza técnicas de edição genética?
Sim, estamos a utilizar o CRISPR-Cas9 para fazer nocautes de genes [inativar a expressão de um gene]. O objetivo é que as plantas passem a ser capazes de extrair fosfato do solo. Inicialmente, quando usámos o CRISPR-Cas9 para fazer nocautes, não foi na perspectiva biotecnológica, usámo-lo na perspectiva de ter uma ferramenta que nos permitia compreender o que é que o gene estava lá a fazer antes de lhe retirarmos ou inativarmos a sua função. Essa é uma das abordagens que fazemos com o CRISPR. Outras vezes fazemos inserção de pedaços externos (são OGM puros e duros), porque precisamos de saber o que é que a ‘coisa’ que introduzimos na planta faz. Nós fazemos isto no laboratório, em condições supercontroladas, para compreendermos os mecanismos moleculares, não é para pormos as plantas lá fora. Agora, se me pergunta se acredito que esta é uma forma de acelerar os processos para chegar a plantas modificadas mais rapidamente com as características que precisamos para manter ou aumentar a produtividade, sim, acredito profundamente e com toda a convicção. Principalmente agora, que existem mecanismos com Cas modificadas para fazer o prime-editing, uma técnica de edição genética com um potencial enorme e que nós estamos a implementar agora no laboratório.
O que distingue o prime-editing do CRISPR?
Ambos são técnicas de edição genética. O prime-editing vai permitir-nos fazer modificações ainda mais precisas e mais específicas que o CRISPR. E porquê que isso é importante para nós? É importante porque, com uma modificação precisa, sem mudar mais nada na planta, eu consigo produzir uma proteína que deixou de ser fosforilada, por exemplo, ou que passou a ter algo que memetiza a fosforilação. E aí consigo estudar imediatamente o que é que a modificação faz. Isto é poderosíssimo.
E qual é a utilidade biotecnológica disso?
Tem toda a utilidade biotecnológica, desde o momento em que nos deixem fazê-lo. É muito simples: as plantas estão expostas ao sol, sujeitas a raios ultravioleta, o que resulta em mutações genéticas diárias. Aliás, se não fossem essas mutações genéticas que ocorrem nos organismos vivos, não teríamos evoluído. É verdade que a maioria das mutações aleatórias são deletérias e não têm expressão, mas algumas conferem vantagens e, ao longo de milénios, são selecionadas por essa mesma vantagem. Ao compreendermos os mecanismos moleculares ao ponto de sabermos exatamente o que precisa de ser modificado, com precisão até ao nível de um único nucleótido, podemos acelerar o processo. E com essas ferramentas, podemos acelerar o processo numa variedade portuguesa de arroz que já está adaptada às nossas condições edafo-climáticas e às necessidades organoléticas que pretendemos.
Com o uso destas tecnologias de edição do genoma, que resultados ou que melhoramentos poderiam ser obtidos nas variedades de arroz portuguesas?
Por exemplo, poderíamos fazer com que as variedades de arroz portuguesas fossem capazes de extrair mais fosfato do solo. Ao otimizar as características genéticas dessas variedades, podemos alavancar a capacidade natural das plantas para absorver nutrientes do solo, contribuindo assim para uma agricultura mais eficiente e sustentável.
Tem outros projetos em mãos que envolvem o uso de biotecnologia?
Aqui há uns anos, tivemos um projeto, com parceiros de Espanha e da Alemanha, muito relevante chamado DELLA-Stress, que explorava precisamente o equilíbrio entre o controlo do crescimento das plantas de arroz e a resposta ao stresse. Nesse projeto, trabalhávamos com arroz, tomate e batata. Foi uma etapa crucial para o nosso laboratório, pois ocorreu durante a sua formação. O nosso objetivo era manipular as proteínas DELLA em arroz, que são repressores do crescimento. Descobrimos que, ao modificar essa proteína DELLA com outra modificação pós-traducional chamada Sumoilação, conseguíamos tornar o arroz mais tolerante ao stresse salino. A salinidade é especialmente relevante para o arroz, uma vez que a escassez de água e o aumento do nível do mar contribuem negativamente para o seu crescimento. Essa linha de investigação ainda continua no laboratório.
Porque escolheu o arroz como planta modelo?
O meu interesse pelo arroz começou por acaso, mas hoje seria uma escolha precisamente pela importância económica que tem, não só a nível mundial, como também a nível nacional. O arroz tem a vantagem de poder ser uma fonte calórica muito boa. Por exemplo, no caso de uma situação socioeconómica e geopolítica grave, em que precisamos de estar mais dependentes de nós e menos dependentes do exterior, o arroz é uma boa opção para incluir numa eventual reserva estratégica.
Portugal poderia ser autosuficiente na produção de arroz?
Espero não estar a dizer nenhum disparate, mas penso que produzimos cerca de 60% do arroz que consumimos. Comparando com outras culturas em Portugal, a nossa produção de arroz não está nada mal. O arroz é um bom exemplo daquilo em que poderíamos chegar a ser sustentáveis, mas é necessário melhorar a competitividade do setor.
Está perto de conseguir o seu objetivo, o de adaptar as variedades portuguesas de arroz para crescerem em condições não inundadas, poupando água e tendo um impacto positivo nas emissões de metano?
É uma linha de investigação robusta que estamos a seguir atualmente, mas ainda não atingimos o nosso objetivo. Estamos a percorrer esse caminho. Já sabemos que as variedades de arroz crescem sem necessidade de estarem alagadas. No ano passado, realizámos um ensaio piloto na Estação Agronómica Nacional, em Oeiras, e obtivemos resultados bastante promissores. Verificámos que a planta não precisa de estar em condições de alagamento para crescer; basta ser regada. No entanto, para manter os níveis de produtividade, precisamos de tornar essas variedades de arroz mais resilientes a alguns dos stresses que serão amplificados nessas condições (como amplitudes térmicas) e melhorar a sua capacidade de extrair nutrientes do solo.

Quais são os stresses ambientais que afetam o arroz em Portugal?
Para além da falta de água, é a salinidade (cada vez mais importante) e a temperatura.
A novidade da sua abordagem é a utilização de modificações pós-traducionais (PTMs) como ferramentas para preparar o proteoma para mudanças no ambiente. Em que consistem as PTMs?
As PTMs são alterações que acontecem nas proteínas depois destas já estarem sintetizadas. Podem consistir no processamento da proteína por protéases que levem à eliminação de parte da sequência da proteína, na adição de grupos químicos, como por exemplo um grupo fosfato no caso da fosforilação que já falámos antes, ou mesmo na adição de outras pequenas proteínas, como por exemplo de SUMO, no processo que também já referi e que se chama Sumoilação.
Os seus interesses na investigação têm-se centrado muito na tolerância das plantas às mudanças no ambiente. Porque escolheu esta área?
Ensino a regulação do metabolismo das plantas no ITQB NOVA, como parte do programa de doutoramento ‘Plantas para a Vida’. Aproveito para mencionar que estamos a desenvolver um novo mestrado chamado ‘Biologia Vegetal para Agricultura Sustentável’, cujo principal objetivo é precisamente aplicar o conhecimento de biologia de plantas na área da agricultura. No âmbito do programa ‘Plantas para a Vida’, ensino a unidade curricular sobre a regulação do metabolismo das plantas. A primeira coisa que mostro aos alunos é o mapa metabólico das plantas, para que possam compreender a sua plasticidade. Essa plasticidade, que inclui aparentes duplicações de vias metabólicas, fascina-me. As plantas são organismos sésseis, incapazes de se mover, mas conseguem adaptar-se de forma notável a um ambiente em constante mudança. Quando alguém começa a compreender a resiliência e a plasticidade das plantas, naturalmente surge o interesse em entender como elas interagem com o meio ambiente. Esse interesse levou-me a estudar e a investigar esses mecanismos, até chegar ao ponto de tentar manipulá-los. Foi um percurso natural para mim.

Isabel Abreu
Licenciada e doutorada em Bioquímica, é a responsável pelo Laboratório de Regulação Proteómica em Plantas (PRPlants) do ITQB NOVA. PRPlants estuda os mecanismos moleculares subjacentes à rápida adaptação das plantas às alterações ambientais, visando a regulação proteica por modificações pós-traducionais (PTMs). O seu objetivo é contribuir com ferramentas para manipular o metabolismo das plantas no sentido de maximizar a produção em condições de crescimento não ideais para mitigar o impacto das alterações climáticas na agricultura.
Esta entrevista foi feita pelo CiB e está publicada na edição de maio da revista Vida Rural.