Toda a diversidade dos seres vivos está codificada no seu ADN usando apenas 4 bases: adenina (A), timina (T), guanina (G) e citosina (C). Apesar de microscópico cada célula do nosso corpo contem 3 mil milhões de pares destas bases, aproximadamente 2 metros de ADN bem compactado. O nosso código de ADN, escrito com estas 4 letras, estende-se por aproximadamente 5 000 km. Apesar de cada um de nós ter um código único, determinadas sequências do ADN são conservadas e idênticas em todos nós, tipicamente codificam genes essenciais. Alterações em uma ou mais bases nestes genes, o que em biologia designamos de mutação, resultam em doença.
O Projeto do Genoma Humano iniciado nos anos 90 foi um esforço internacional de sequenciação e mapeamento dos genes humanos e foi talvez o desencadear desta nova era da genética na biomedicina. Esta iniciativa impulsionou o avanço das metodologias de sequenciação de ADN tornando-a rápida, acessível, e abriu portas à medicina de precisão. A sequenciação do genoma facilitou a identificação dos genes associados às doenças genéticas.
A edição do genoma tem sido recentemente muito divulgada e colocada como uma metodologia com o potencial de tratar e curar doenças. Esta notoriedade deve-se a descobertas e desenvolvimentos recentes de uma ferramenta biológica de fácil utilização laboratorial, denominada CRISPR (do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats), que permite introduzir modificações no ADN em zonas específicas do mesmo. No entanto, outras ferramentas de edição de genoma já tinham sido previamente desenvolvidas e até utilizadas em ensaios clínicos. Esta nova era da genética teve inicio há talvez três décadas, após os avanços da sequenciação do ADN, foi possível iniciar tratamentos pelas denominadas terapias génicas ou genéticas.
A edição do genoma é uma das várias metodologias utilizadas em terapia génica. Esta última abrange todos os tratamentos de doenças pela introdução de material genético nas células do paciente. Presentemente já existem vários medicamentos de terapia génica aprovados. Ainda não foi aprovado qualquer tratamento utilizando ferramentas de edição do genoma mas, é expectável que tal venha a acontecer nos próximos anos.
Após três décadas de investigação a terapia génica demonstrou que pode curar doenças genéticas. Um exemplo desse sucesso foi demonstrado no tratamento de doentes com Imunodeficiência combinada grave SCID (do inglês severe combined immunodeficiency). Esta doença é uma imunodeficiência primária em que os pacientes apresentam baixos níveis de células T e B. As SCID são doenças hereditárias resultantes de uma mutação genética num gene essencial para o desenvolvimento do sistema imune. As crianças com SCID tem um sistema imune deficiente e não são capazes de lidar com os microrganismos que as rodeiam e contraem inúmeras infeções. Sem tratamento a doença é fatal no primeiro ano de vida. No passado, estas crianças eram mantidas sob um isolamento rigoroso, em ambientes esterilizados, no interior de incubadoras ou tendas plásticas. Por este motivo esta doença é também conhecida pela doença dos ‘rapazes bolha’. Existe desde 2016 um medicamento aprovado de terapia génica para o tratamento de um dos tipos de SCID. Para ser aprovado vários estudos escrutinados pelas entidades regulatórias foram realizados. Estes ensaios clínicos iniciaram-se em 1990 com duas meninas, sucedendo-se vários outros e culminando na sua aprovação e entrada no mercado em 2016. Este tratamento personalizado consiste na colheita das células da médula óssea do paciente, estas são modificadas em laboratório, ex vivo, inserindo-se o gene corrigido para executar as funções do gene mutado. As células após modificação genética são reintroduzidas de novo no paciente. Neste caso as células modificadas são células estaminais hematopoéticas, células que conseguem formar todas as diferentes células do sangue, e como tal os pacientes podem ser curados.
Alcançar a cura de doenças é no entanto a exceção à regra. Isto porque, corrigir ou alterar o genoma de várias células, de um órgão, ou de vários é muito difícil. Estas terapias têm vários obstáculos e um deles é entregar eficientemente o material genético especificamente às células que queremos tratar. Quando é possível retirar as células do paciente e modificá-las no laboratório, ex vivo, essa tarefa é facilitada. Este é o caso de doenças que afetam as células do sangue como a talassemias, hemofilias, ou anemias de origem hereditária. Estas serão as doenças em que a cura poderá ser mais fácil de atingir, desde que tratadas muito cedo. Doenças em que a entrega do material genético é realizada diretamente no indivíduo, in vivo, são mais difíceis de executar. A modificação parcial de algumas células consegue tratar as doenças, alcançando melhorias dos sintomas, sem obter uma cura total.
O sucesso no tratamento de doenças como as SCIDS (severe combined immunodeficiency) veio trazer esperança e relançar a investigação das terapias génicas incluindo terapias com edição do genoma. A edição do genoma tem como principal vantagem a elevada precisão. Enquanto no tratamento por terapia génica aprovado para SCID a inserção do gene corrigido no ADN é aleatória, na edição do genoma a inserção é numa zona específica do ADN. Mas esta precisão é realizada à custa de eficiência e poderá não ser 100% precisa e nesse sentido a tecnologia terá de continuar a ser aperfeiçoada.
Após o desenvolvimento da CRISPR a investigação tem evoluído rapidamente surgindo várias ferramentas novas, como edição de ‘bases’ ou edição ‘prime’. Todas elas apresentam vantagens e limitações. Para cada doença, uma ferramenta será mais adequada do que outra e quanto mais opções existirem maior a probabilidade de termos uma terapia bem-sucedida. As terminologias e ferramentas moleculares vão alterar-se e multiplicar-se certamente no futuro mas, estas terapias de modificação do ADN parecem ter chegado para ficar em medicina.
Ana Sofia Coroadinha, investigadora no ITQB NOVA
- Este artigo de opinião foi originalmente publicado na Visão Saúde, em dezembro de 2019