Nos últimos anos temos assistido a uma série de eventos que têm ameaçado as nossas sociedades e o conforto socioeconómico a que estamos habituados. A guerra em diferentes zonas do globo, e mais recentemente na Europa, dois anos de uma pandemia que modificaram os hábitos de vida, e as alterações climáticas que em muitas zonas do globo já se fazem sentir, são uma mistura explosiva para a qual se esperam respostas firmes e rápidas das entidades governamentais e das organizações internacionais. Se englobarmos neste cenário o aumento da população, que se espera possa atingir 9 mil milhões de pessoas em meados deste século e 11 mil milhões até 2100, e a diminuição consistente da terra arável desde há pelo menos 70 anos, percebemos que só com medidas muito eficazes poderemos minimizar os efeitos de uma crise humanitária global que se avizinha e, assim, tentar atingir, pelo menos parcialmente, alguns dos objectivos do desenvolvimento sustentável estabelecidos pela UNESCO.
Neste contexto, as ferramentas biotecnológicas podem desempenhar um papel primordial não apenas na produção de variedades mais produtivas, mas também no aumento da tolerância das plantas aos stresses ambientais e bióticos que as modificações climáticas necessariamente acarretarão. É certo que a simples utilização de técnicas biotecnológicas não implicará o fim da fome no planeta. No entanto, em pleno século XXI, quando técnicas de genómica assumem um papel cada vez mais relevante nas áreas da saúde e da indústria farmacêutica, como se viu com o rápido desenvolvimento de vacinas de RNAm contra a covid, seria incompreensível que estas modernas metodologias de melhoramento de plantas não pudessem ser utilizadas na sua plenitude, condicionando assim, a produção de alimentos e condenando muitas populações à fome e à miséria. Sem querer menorizar o impacto que as alterações climáticas terão na sociedade, nunca é de mais relembrar que a maior ameaça às nossas sociedades é a pobreza extrema que ocorre em muitas zonas do globo, causa de guerras, revoluções e movimentos migratórios.
Desde o aparecimento das primeiras técnicas de manipulação genética de plantas, nos anos 80 do século passado, e a consequente plantação de vastas áreas a partir de meados dos anos 90 do século XX, alguns países, principalmente na América do Sul e do Norte, souberam aproveitar esta tecnologia para aumentarem a produção agrícola e a sua segurança alimentar. Na Europa a situação foi completamente diferente. Pressionados por grupos ecologistas e receosos de novos escândalos alimentares, os governos europeus implementaram uma legislação absurda que mantém a forma como se faz melhoramento de plantas Europa ao nível do que se fazia durante a revolução verde, nos anos 50-60 do século XX.
Descobertas recentes permitem que o melhoramento das plantas se possa fazer por edição genética, uma tecnologia que valeu às autoras que a descobriram o prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina em 2020. Esta metodologia, permite modificar as plantas sem necessidade de introdução de genes de outros organismos, um pouco à semelhança do que se faz com as técnicas de mutagénese, mas de uma maneira muito mais precisa e eficaz. O potencial desta tecnologia torna a transformação genética uma técnica quase obsoleta e permite perspectivar uma alteração profunda na forma como novas variedades de plantas vão ser produzidas no futuro, com implicações positivas numa utilização mais eficaz da água e dos elementos minerais, e com recurso a uma adubação mais reduzida e menos pesticidas, condições absolutamente necessárias para reduzir o impacto das alterações climáticas.
Estranhamente, grande parte da Europa permanece um pouco alheada destas inovações, como uma decisão recente (2018) to Tribunal de Justiça da União Europeia mostra e que equiparou as técnicas de edição genética às metodologias de transformação genética, fazendo com que as plantas obtidas por edição genética devam ser regulamentadas como se de OGMs se tratassem.
No meio desta escuridão científica, parece haver alguma esperança, como indica uma recente proposta da Comissão Europeia onde se mostra alguma receptividade para modificar a legislação relativa às novas técnicas genómicas, que incluem a edição genética. Chegou a altura de a União Europeia aproveitar o seu potencial científico e tecnológico para que os cientistas possam colocar ao serviço da agricultura plantas com novas características, permitindo que os agricultores europeus produzam nas mesmas condições em que os seus competidores de outras áreas do globo o fazem. Parece óbvio que só a implementação de uma legislação mais moderna, focada na segurança do produto final, neste caso plantas, e não na metodologia utilizada para a sua produção, poderá assegurar que os objectivos de estratégias europeias como o “Pacto Verde” e do “Prado ao Prato” possam ser alcançados.
Jorge M. Canhoto
Professor no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra
Presidente do CiB (Centro de Informação de Biotecnologia)
(Este artigo de opinião foi publicado na edição de abril de 2022 da revista Frutas Legumes e Flores)